Powered By Blogger

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Você beijou Lilly – Bukowski



Era uma noite de quarta-feira. A televisão não estava muito boa. Theodore tinha cinquenta e seis anos. Sua esposa, Margaret, cinquenta. Os dois estavam casados há vinte anos e não tinham filhos. Ted apagou a luz. Os dois ficaram estirados no escuro.
- Bem – disse Margy –, não vai me dar um beijo de boa noite?
Ted deu um suspiro e voltou-se para ela. Deu-lhe um beijinho de leve.
- Você chama isso de beijo?
Ted não respondeu.
- Aquela mulher no programa parecia Lilly, não parecia?
- Não sei.
- Você sabe.
- Escuta, não comece nada, que não acontece nada.
- Você simplesmente não quer discutir as coisas. Só quer se fechar em sua concha. Seja honesto. A mulher do programa parecia Lilly, não parecia?
- Tudo bem. Tinha uma certa semelhança.
- Isso fez você se lembrar de Lilly?
- Oh, Deus…
- Não fuja. Fez você se lembrar dela?
- Por um momento, sim…
- Foi bom?
- Não, escuta, Margy, isso aconteceu há cinco anos!
- O tempo muda o que acontece?
- Eu pedi desculpas a você.
Desculpas! Você sabe o que fez comigo? E se eu tivesse feito isso com algum homem? Como é que você ia se sentir?
- Eu não sei. Faça, e aí eu vou saber.
- Oh, agora você está sendo gozador. É uma piada!
- Margy, nós já discutimos essa coisa quatrocentas ou quinhentas noites.
- Quando você fazia amor com Lilly, a beijava como me beijou esta noite?
- Não, acho que não…
- Como, então? Como?
- Nossa, pare com isso!
- Como?
- Bem, diferente.
- Diferente como?
- Bem, era uma novidade. Eu estava excitado…
Margy sentou-se na cama e deu um grito. Depois parou.
- E quando você me beija não é excitante, é isso?
- Estamos acostumados um ao outro.
- Mas é isso que é amor: viver e crescer juntos.
- Tudo bem.
- “Tudo bem?” Que quer dizer com “tudo bem”?
- Quero dizer que você tem razão.
- Não diga isso como se estivesse falando sério. Você simplesmente não gosta de conversar. Tem vivido comigo esses anos todos. Sabe por quê?
- Não tenho certeza. As pessoas simplesmente se acomodam com as coisas, como o emprego. As pessoas simplesmente se acomodam com as coisas. Acontece.
- Quer dizer que estar comigo é como um emprego? É como um emprego?
- A gente bate o ponto no emprego.
- Lá vem você de novo. Isso é uma discussão séria!
- Tudo bem.
- “Tudo bem?” Seu asno nojento! Está quase dormindo!
- Margy, que você quer que eu faça? Isso aconteceu há anos!
- Tudo bem, eu lhe digo o que quero que faça! Quero que você me beije como beijava Lilly. Quero que me foda como fodia com Lilly!
- Eu não posso fazer isso…
- Por quê? Por que eu não excito você como Lilly excitava? Porque eu não sou nova?
- Eu mal me lembro de Lilly.
- Deve se lembrar bastante. Tudo bem, não precisa me foder! Só me beijecomo beijava Lilly!
- Oh, meu Deus, Margy, por favor, dá uma folga, eu lhe imploro!
- Eu quero saber por que temos vivido todos esses anos juntos! Será que eu desperdicei minha vida?
- Todo mundo desperdiça, quase todo mundo desperdiça.
- Desperdiçam a vida?
- Eu acho.
- Se você ao menos adivinhasse o quanto eu odeio você!
- Quer o divórcio?
- Se eu quero o divórcio? Oh, meu Deus, que calma a sua! Você arruína toda a porra da minha vida e depois me pergunta se eu quero o divórcio! Eu estou com cinquenta anos! Dei minha vida a você! Pra onde eu vou daqui?
- Pode ir pro inferno! Estou cheio de sua voz. Estou cheio de sua encheção de saco.
- E se eu tivesse feito isso com um homem?
- Eu gostaria que tivesse. Gostaria que tivesse!
Theodore fechou os olhos. Margaret soluçava. Lá fora, um cachorro latiu. Alguém tentava fazer um carro pegar. Não pegava. Fazia dezoito graus e meio numa cidadezinha de Illinois. James Carter era presidente dos Estados Unidos.
Theodore começou a roncar. Margaret foi à gaveta de baixo da cômoda e pegou o revólver. Calibre .22. Carregado. Voltou para junto do marido na cama.
Margaret sacudiu-o.
- Ted, querido, você está roncando
Tornou a sacudi-lo.
- Que é…? – perguntou Ted.
Ela destravou o revólver e encostou-o na parte do peito dele mais perto dela e puxou o gatilho. A cama estremeceu e ela afastou o revólver. Um som muito parecido a um peido escapou da boca de Theodore. Ele não pareceu sentir dor. O luar entrava pela janela. Ela olhou, e o buraco era pequeno e não saía muito sangue. Margaret passou o revólver para o outro lado do peito de Theodore. Tornou a puxar o gatilho. Desta vez ele não emitiu nenhum som. Mas continuou respirando. Ela o observava. O sangue escorria. Tinha um fedor horrível.
Agora que ele agonizava, ela quase o amava. Mas Lilly, quando ela pensava em Lilly… a boca de Ted na dela, e todo o resto, aí queria atirar nele de novo… Ted sempre fora bonito de gola rulê e de verde, e quando peidava na cama sempre se virava primeiro – nunca peidava contra ela. Raramente faltava um dia no trabalho. Ia faltar amanhã…
Margaret soluçou durante algum tempo, depois adormeceu.

Por Onde Passo - Vivi Ulbricht




Por onde passo, deixo a minha estrada,
Faço minha morada,
Deixo-lhe entrar me visitar,
Sirvo-lhe um café!
Conto meus causos...
Não quero aplausos!
Quero sim, que olhe para mim,
Sinta o que tenho para dizer,
Ouça meu silêncio,
Enxergue minh'alma,
Deixe eu tocar seu coração;
Daí então, quando ouvir
o assovio do vento,
vou partir e deixar meu perfume em ti....


Vivi Ulbricht

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Pobre Coração - Vivi Ulbricht


Estava recostada numa confortável cadeira,
tranquila, olhos cerrados,
a cabeça sem nada a pensar...
ouvindo  "Toccata et Fugue" de Bach;

Meus dedos em meu pescoço,
Sentiram meu coração disparado...
Porque? Pensei...
Talvez ele esteja querendo me avisar,

Dizendo afoito, que sente falta de amar!
Está pedindo socorro!
batendo desesperado, 
como se estivesse sem ar...

Está apertado, sufocado,
Quase petrificado...
O desamor o está transformando,
Ele que era doce e sensível,
Agora é só desilusão,

Pobre coração!
Morrendo de inanição!

Vivi Ulbricht



Bem no Fundo - Paulo Leminski


Bem no fundo


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Fernando Pessoa



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo.
que ninguém sabe quem é
( E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras
 da casa.
(Trecho de “Tabacaria”, de Fernando Pessoa)